Políticas para negros ‘sofrem asfixia’ desde antes da covid-19, aponta debate
As políticas públicas para os negros já sofriam de “asfixia” muito antes da pandemia de covid-19 no Brasil. Essa é a conclusão de debate promovido pela Comissão de Direitos Humanos (CDH), nesta segunda-feira (12), a respeito dos impactos do coronavírus sobre a população negra do país.
Autor do requerimento para a audiência pública remota, o presidente do colegiado, senador Humberto Costa (PT-PE), observou que as comunidades mais vulneráveis são as mais atingidas pelos efeitos da crise sanitária. De acordo com o senador, a covid-19 está longe de ser uma doença “democrática”, por atingir de formas diferentes cada seguimento da sociedade.
Para Humberto, os efeitos da epidemia não se reservam aos mais de 530 mil mortos por covid porque, segundo afirmou, esses números trazem consequências sobre as famílias de maior vulnerabilidade social compostas, em sua maioria, de pessoas negras. Ele mencionou o funcionamento da CPI da Pandemia, lembrando que o dever do colegiado é apurar responsabilidades “por essa tragédia a que estamos submetidos”. E firmou compromisso de enviar e discutir com todos os demais senadores as questões levantadas no debate desta segunda.
Uma das fundadoras da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Givânia Maria da Silva avaliou que a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil quando o Executivo Federal “já tinha acabado com todas as políticas públicas para os negros”. Segundo ela, o governo exterminou conquistas históricas dessa população logo depois de ter se elegido “sob a plataforma da perseguição a quilombolas e indígenas”.
— Já estávamos asfixiados porque esse “oxigênio”, que eram as políticas públicas, já havia sido tirado, e isso é muito grave. O governo tenta a todo custo eliminar direitos assegurados pela Constituição de 1988 — denunciou.
Racismo
Humberto considerou lamentável que assuntos como o racismo ainda tenham que ser discutidos no país. Para ele, o preconceito é a “pior herança do ponto de vista dos direitos humanos”, já que se manifesta nas desigualdades e dificuldades de acesso dos negros a bens, serviços, políticas públicas e até a vacinação contra a covid-19.
— Apesar de ser um tema que já deveria ter sido banido, o racismo ainda é extremamente forte em boa parte dos países e, especialmente, no Brasil. Muitos setores vulneráveis estão sujeitos [ao racismo] no nosso país, e as mazelas causadas pela pandemia ocorrem de forma diversa para cada setor.
Na opinião da senadora Zenaide Maia (Pros-RN), a pandemia de coronavírus trouxe luz sobre problemas estruturais, como o corte em recursos para a educação, especialmente para as minorias. Segundo ela, o governo comete irresponsabilidades sobre a vida e “normaliza o fato de morrer”. Ao observar que os negros já sofrem histórico estrutural de violência, Zenaide declarou que a situação piorou com o olhar do presidente da República. Conforme a senadora, as atitudes de Jair Bolsonaro prejudicam especialmente a população mais empobrecida e carente do país.
— Temos uma política de Estado que não respeita a maioria do seu povo. O racismo é institucional e, o mais grave, considerado como normal. A gente vê claramente que os assassinatos advêm justamente de quem lhe devia dar segurança. É o Estado quem primeiro condena, assim como faz com mulheres, população LGBTQIA+ e isso piorou assustadoramente nos últimos anos — disse.
Diálogo
Ex-presidente da CDH, o senador Paulo Paim (PT-RS) disse que defender os negros é questão de “honra, amor e humanidade” e que não há como se pensar em desenvolvimento sem cuidar dessas pessoas. O parlamentar defendeu a manutenção do diálogo, a produção de vacinas contra a covid-19 com agilidade, bem como a análise de propostas como o PLS 482/2017, que determina que o Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, seja declarado como feriado nacional.
— As grandes conquistas da humanidade foram obtidas conversando. E as grandes falhas ocorreram pela falta de diálogo, quando vêm as guerras e a barbárie. Por isso, eu digo: com a democracia, tudo, sem ela, nada — salientou.
Givânia Maria Silva afirmou que o número de quilombolas assassinados desde 2016 aumentou em 350% no Brasil. De acordo com ela, as lideranças são mortas no instante em que buscam direitos. “Somente a elite tem deixado de sofrer com essa realidade”, disse. A debatedora reforçou ainda que há dificuldades de acesso à imunização contra a covid e declarou que o governo quer “vacinar menos e matar mais, especialmente os negros”.
— Se nós já estávamos atrás na fila, a pandemia nos coloca, talvez, ainda nem na fila. Eu diria que não estamos mais nem na fila. Quem está na fila pode um dia chegar, então, precisamos de mais espaços como este [do debate da CDH], para denunciar esses abusos, pois todos sabem o que vem ocorrendo neste “desgoverno”.
Retrocessos
O coordenador-geral do Movimento Negro Unificado, Silas Félix, analisou que os direitos dos negros no Brasil sofreram retrocessos. Ele leu carta que o conjunto de entidades voltadas aos direitos dos negros preparou para a CDH, com denúncias sobre temas como “desorganização de políticas públicas elaboradas por governos anteriores” e propostas de debates junto ao Senado.
Já a pesquisadora em Saúde da população negra e HIV/Aids, professora Maria Aparecida do Carmo, destacou o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) nos cuidados com os negros e defendeu o fortalecimento dos programas sociais em saúde, principalmente voltados para a classe.
— A população negra está doente e na UTI. O SUS, tão importante e tão parceiro e transversal, precisa dar respostas para termos menos pessoas sofrendo de problemas mentais, menos pessoas com possibilidades de menos acesso a alimentação, emprego, moradia, de políticas públicas. E que, na saúde, tenhamos mais equidade – ponderou.
Bem viver
“O povo negro não quer só existir, mas quer bem viver”, foi uma das frases da coordenadora do Coletivo Nacional de Juventude Negra, Dara Sant’anna. Ela tratou de questões de segurança pública relacionadas aos negros e defendeu investimentos e treinamento para policiais que, segundo afirmou, entram despreparados nas periferias. Para Dara, também são fundamentais ações como iluminação das ruas e saneamento básico pensados sob o ponto de vista da segurança pública, “para que as pessoas possam ter novas perspectivas de vida”.
Dara também defendeu que as operações policiais tenham como base a inteligência, a fim de que não se faça apenas apreensão de armas e drogas, “mas se mantenha essa população viva”. Para a debatedora, essa questão passa, principalmente, por entender quem são os grandes mandantes do tráfico de drogas no país.
— Os grandes traficantes não estão nas grandes periferias. Estamos aqui pedindo para esta Casa que nos representa, que faça um processo de rediscussão do que é segurança pública no nosso país. Precisamos parar com essas guerras para termos democracia racial, comprometida com um viés de responsabilização do Estado, e não abriremos mão disso por qualquer viés de resolução rápida e que não dá retorno rápido — protestou.
Participação
Cidadãos de vários estados participaram da audiência pública, por meio de perguntas e comentários enviados pelo Portal e‑Cidadania. É o caso do internauta Gabriel Verçoza de Melo, de Pernambuco, para quem o debate “foi um grande acerto do Senado, reunindo falas fortes e fundamentais”. Ele disse estar ansioso pelos desdobramentos desse momento da atuação do Legislativo.
Para Dyonatan Faveri, do Paraná, “é ultrajante, quando tratam o cidadão de acordo com sua cor de pele, como se fosse outra espécie de ser humano ou com alguma fragilidade”. Já Luiza Roselli Calazans Serra, de São Paulo, considerou o assunto delicado e analisou que ainda há falta de informação e apoio sobre o assunto.
Voto de repúdio
No começo da audiência pública, Humberto lamentou recentes mortes de mulheres trans no país. Ele citou o caso de Roberta Nascimento Silva, de 33 anos, que teve o corpo queimado enquanto dormia no centro do Recife no fim de junho. Ela foi a quarta travesti assassinada em Pernambuco em menos de um mês. Humberto mencionou ainda a morte de Kalyndra Nogueira da Hora, de 26 anos, que teria sido morta por asfixia pelo companheiro dela, em 18 de junho, também na capital pernambucana. Para o senador, casos assim são inaceitáveis.
— A comissão repudia veementemente esses atos de violência brutais. Rejeitamos e denunciamos esses atos de tamanha perversidade, que precisam ser apurados e punidos. É dever de todos nós garantir que as identidades de gênero e orientações sexuais sejam respeitadas — disse o senador.