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Depois da luz no fim do túnel

A notícia de que três novas vacinas contra o Covid-19 entraram em fase de testes cria de imediato uma perspectiva de futuro. Ainda assim, é preciso cautela porque há um longo caminho pela frente. Cientistas e infectologistas de todo mundo avaliam que as fases de produção, distribuição e aplicação em massa das doses são um processo que poderá levar meses, caso tudo ocorra como previsto. 

Mesmo que haja incertezas sobre pontos específicos que envolvem eficácia e efeito sobre o organismo humano, a vacina representa um alento para a humanidade. Correndo tudo bem, será possível planejar o retorno ao trabalho, à vida social, à economia, enfim, a todos os aspectos da vida pré-pandemia, mesmo que saibamos desde já que nada será como antes, pois acumulamos uma experiência humana que certamente transformará nossa história e nossa cultura.

Há inúmeras reflexões em circulação sobre como será o futuro. Em resumo, há duas tendências de pensamento atualmente em voga. Há quem veja que vamos aprofundar as relações permeadas pela tecnologia de informação, com o aumento de práticas de trabalhos não presenciais, Home office, redes sociais, educação on lines, Deliverys etc, o que poderá resultar em ganhos de produtividade, numa mudança inédita no modelo capitalista de produção e distribuição de bens e serviços.

E há aqueles que enxergam esse processo com cautela, imaginando que mega-sociedades muito dependentes das tecnologias de informação tornam-se mais vulneráveis quanto à sua segurança e proteção da intimidade. Muitos temem que o aumento do controle dos meios de comunicação pode fragilizar a democracia e abrir espaço para um gradual aumento do Estado de Exceção. Não se pode esquecer que crimes cibernéticos estão na ordem do dia.

Por enquanto, contudo, está claro que os reflexos da pandemia no cotidiano serão sentidos na economia e na política, com mudanças graduais nas leis, nos costumes e nos modos de convivência. Depois que atravessarmos fim do túnel, certamente será fundamental que nos voltemos para o debate sobre a “humanização da humanidade”, porque haverá medos, desconfianças, pobreza e falta de perspectivas.

Estaremos propensos a ter uma visão mais trágica da vida, mas ao mesmo tempo mais igualitária, compartilhada, repudiando atitudes recentes de autoridades na base do “quem você sabe com quem está falando”. A casa e a rua, na visão do antropólogo Roberto Da Matta, serão revisadas por causa de medo do surgimento de outros surtos viróticos, mas haverá em contrapartida maiores cuidados com a saúde, a higiene e a limpeza urbana.

É provável que vamos ficar mais atentos à crise ambiental, pois está demonstrado que o desequilíbrio sistemático dos biomas provoca gerações viróticas cada vez mais perigosas, mostrando que a raça humana, ao destruir sistematicamente a natureza para produzir riquezas (e distribuí-las desigualmente), gera paradoxalmente condições para sua própria destruição.

Diante dessas transformações sistemáticas, os próximos anos vivenciarão profundas transformações da ordem legal, reordenando a sociedade dos novos tempos, tentando enquadrar os conceitos de desenvolvimento sustentável, inclusão social e estabilidade demográfica, tentando não repetir os erros cometidos nos últimos dois séculos.

Essa é uma visão que tenta mesclar um otimismo realista com novos sentimentos, cuja palavra de ordem será adaptabilidade. Nos últimos 50 anos as sociedades humanas viveram sob a égide do consumismo desenfreado, do individualismo egoísta e das fantasias em torno de status propiciado pelas técnicas de marketing.

Os novos tempos serão de contenção, de reavaliação comportamental e, no âmbito institucional, de defesa intransigente da democracia, não só como parâmetro de convivência harmônica entre pessoas com visão de mundo divergente, mas sobretudo como forma de gestão entre os poderes reguladores da mecânica social. Nesse momento, olhar pra frente significa refletir sobre a sociedade que desejamos construir, principalmente fazendo de 2020 um importante período de revisão de conceitos, negando-se a cultivar pessimismos extravagantes.

(*) Mansour Elias Karmouche é Presidente da OAB/MS.

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