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A esfinge e os líderes

Nos últimos artigos tenho insistido na necessidade da formação de um “centro democrático progressista”. O que é isso? Desde logo, não se trata de um “centrão”, ou seja, de um agrupamento de pessoas que dominam legendas de partidos e, na prática, se unem para apoiar ou rejeitar propostas do governo, cobrando um preço clientelístico.

O “centro democrático” tampouco pode ser um agrupamento anódino, que ora se define como favorável ao povo e esbanja recursos, como os populistas, ora se comporta de modo austero, com bom manejo das contas públicas, mas sem olhar para o povo, como os “neoliberais”. Então, o que seria?

Escrevi sobre o “liberalismo progressista” dizendo que ele se diferencia do “liberalismo conservador, de corte autoritário”. Neste, o mercado é o deus ex-machina que molda a sociedade. O primeiro respeita os mercados, sabe que as economias contemporâneas são “de mercado” (quase sem exceção), mas sustenta que elas não dispensam a regulação e mesmo a ação do Estado na economia. A atuação estatal, não sendo a única e nem mesmo a principal mola do crescimento econômico, continua a ser necessária para evitar que a desigualdade mine a democracia e o crescimento.

Na prática, o risco maior do liberalismo conservador, de caráter autoritário, é o de derrapar para formas abertamente não democráticas de decidir e assim aumentar o fosso entre dirigentes e dirigidos, abrindo espaço para manifestações populares antagônicas ao poder. Já o risco do progressismo é se transformar em populismo e, com o propósito ou o pretexto de servir ao “povo”, desorganizar as finanças públicas, levar à inflação e ao desemprego. O país cai na estagnação, abrindo espaço para a “direita” (ou seja, para formas disfarçadas ou abertas de autoritarismo).

Não terá sido um vaivém entre essas formas de liberalismo, autoritarismo e populismo (mais do que o risco de fascismos ou comunismos) o que vem caracterizando boa parte das formas políticas do mundo contemporâneo? Desse vaivém escapam os países onde liberdade e democracia não formam parte do ethos nacional (os que não são ocidentais ou ocidentalizados). A oscilação acima referida, e mesmo a dúvida sobre o valor da democracia representativa, tem aumentado muito, afetando nações de tradição liberal. Não faltam autores que chamam a atenção para estes desdobramentos: a crise das democracias, como morrem as democracias, o povo contra as elites, e assim por diante, dão título a muitos dos volumes que tratam dos fenômenos políticos contemporâneos.

Por trás desse desaguisado estão os novos meios produtivos e as formas contemporâneas de comunicação, que moldam as sociedades. A primeira vez que me dei conta disso foi em maio de 1968, quando eu era professor da Universidade de Paris em Nanterre. Anos mais tarde, procurando teorizar a esse respeito, disse no discurso em que transmiti a presidência da Associação Internacional de Sociologia, em 1986, que os fios desencapados da sociedade podem se tocar de repente, produzindo curtos-circuitos fora da polaridade tradicional “proprietários versus trabalhadores” e dos partidos que no passado os representavam. Havendo comunicação em rede, as faíscas que se acendem num ponto se propagam para os demais e o protesto atravessa os limites entre classes e segmentos sociais, contaminando amplos setores da sociedade. Essa dinâmica do protesto e a velocidade da sua expansão já eram perceptíveis em 1968. Foi somente quando a TV e o rádio passaram a cobrir as manifestações estudantis que estas entraram em contato com as negociações sindicais, que antes se davam à parte e à distância.

Que dizer agora, quando a internet e as redes conectam as pessoas e saltam as organizações? Se Descartes dizia cogito ergo sum (penso, logo existo), hoje a frase síntese é outra: estou conectado, logo existo. Mais ainda: as forças produtivas contemporâneas, com robôs e inteligência artificial, aumentam a produtividade, concentram a renda e não geram empregos na proporção da procura por trabalho, a despeito da redução da taxa de crescimento da população. E graças à internet muitos ficam sabendo do que acontece.

Não será esse o fantasma por trás dos “coletes amarelos” de Paris, dos partidários do Brexit na Grã-Bretanha ou dos eleitores de Trump que querem ver os Estados Unidos great again? E não haverá risco, em nuestra America, de confundir a Frente Ampla (eventualmente vitoriosa no Uruguai), ou os peronistas argentinos e agora as manifestações no Chile, que lembram o Brasil de 2013, e mesmo no Equador ou na Bolívia, com uma luta tradicional da “esquerda” contra a “direita”, como se ainda estivéssemos nos tempos da guerra fria? A guerra agora é outra: menos desigualdade, fim da corrupção política, mais empregos e melhores salários. E quando há diminuição do ritmo de crescimento, como lembrava Tocqueville sobre a Revolução Francesa, a insatisfação eclode forte, como atualmente no Chile.

Dito isso, o centro liberal precisa ser progressista não apenas porque a igualdade de oportunidades e a garantia de um patamar de condições de vida dignas para todos são essenciais para uma democracia estável e uma sociedade civilizada, mas também porque vivemos outro momento do capitalismo, no qual as políticas públicas devem ser complementadas pela ação da sociedade civil. É do interesse da maioria existir um governo ativo e com rumo. Capaz de respeitar as regras do mercado, mas também os interesses e necessidades do povo. E estes não se resolvem automaticamente na pauta econômica, requerem ação política e ação da sociedade.

Não será esse o miolo de um centro radicalmente democrático e economicamente responsável? Talvez, mas na vida política não basta ter ideias, é preciso que alguém as encarne. Ou aparece quem tenha competência para agir e falar em nome dos que mais precisam ou a esfinge nos devora.

 

(*) Sociólogo, foi presidente da República

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