Seminário mostra que encarar transporte como direito social é primeiro passo para implantar tarifa zero
Tarifa zero no transporte público, é possível? A partir desse questionamento, a Câmara Municipal de Campo Grande promoveu nesta quarta-feira seminário ouvindo a opinião de especialistas, autoridades ligadas ao transporte da Capital e conhecendo experiências de cidades que já aderiram a modalidade. A ideia é encarar o transporte como um direito constitucional do cidadão, tal como ocorre com a saúde e educação que possuem percentuais específicos de verbas destinadas no Orçamento. Alguns exemplos trazidos ao debate respondem ao questionamento que sim, é possível ter a tarifa sem custos aos usuários.
O vereador Prof. André Luis, proponente do debate e presidente da Comissão Permanente de Mobilidade Urbana da Casa de Leis, ressaltou a necessidade de debater as melhorias no transporte. “Da mesma forma como a Constituição garante saúde e educação, o transporte é fundamental na vida do brasileiro; por isso a importância em discutir com mais profundidade a tarifa zero”, disse.
O incentivo ao uso do transporte público, porém, esbarra ainda na qualidade para que o cidadão seja estimulado a deixar o carro. “Em uma cidade desenvolvida todos usam o transporte público, que precisa ser de qualidade”, disse. O vereador acrescentou as consequências da diminuição de veículos individuais no trânsito: redução de acidentes, impacto na saúde mental e na economia familiar.
Exemplo – Presente no debate na Câmara, Celso Haddad, diretor-presidente da empresa pública de transporte de Maricá (RJ), trouxe a experiência daquele município que desde 2014 oferece a tarifa sem custos aos seus passageiros. No início da implantação, eram duas empresas que faziam esse serviço em três linhas. Em 2017, houve aumento para nove linhas, o que segue crescendo. À época, por ineficiência e problemas nos ônibus, foi rompido o contrato com uma das empresas. Já em 2022, eram 38 linhas, crescendo até mesmo durante a pandemia. Ele aponta que atualmente a cidade faz cerca de 120 mil deslocamentos por dia.
“É preciso ter qualidade, ter dignidade ao entrar naquele ônibus. O tarifa zero já deveria estar. É direito das pessoas e não uma possibilidade”, afirmou Celso Haddad. Ele citou avanços: desde 2019 o Município possui frota e motoristas próprios, contratados por concurso público. “A população e o público determinam linhas, melhores horários”, disse. Ele citou ainda crescimento econômico e melhores condições de vida dos moradores com esse acesso gratuito.
O vereador Ayrton Araujo, presidente da Comissão de Obras e Serviços Públicos, destacou que o debate é muito rico. “O acesso à população que poderá ter acesso facilitado. É um projeto importante que irá gerar emprego e renda e dar qualidade ao usuário do transporte”, disse.
Caminhos – Encarar a cobrança de tarifa de transporte como uma barreira social é um dos primeiros passos para entender a necessidade da tarifa zero. Partindo dessa premissa, surge a importância de pensar no transporte de qualidade, mudar a lógica de financiamento e das concessões, além de dar ampla transparência aos custos.
Marcos de Souza, representante do Portal Mobilize, lembrou que o problema afeta cidades no mundo inteiro pela perda de passageiros e porque o transporte ainda é encarado como algo para a população mais pobre, o que representa uma visão atrasada. “Notamos que pelo mundo as pessoas gastam cerca de 8% da renda com transporte, enquanto no Brasil chega de 18% a 20%”, disse.
Como caminhos, ele aponta a participação pública no financiamento. Ele citou exemplos de Caucaia (CE), onde o comércio local foi beneficiado com o transporte gratuito e a arrecadação municipal aumentou. Em Volta Redonda (RJ) há ônibus gratuito apenas no Centro, algo que ajudou na liberação de vagas e também aumentou compras no comércio. Já em Araucária (PR), a tarifa vem sendo reduzida gradativamente e já baixou de R$ 4,40 para R$ 1,25. “É possível pensar a tarifa zero de forma gradativa ou atender ciclos para experiências e ver como sociedade responde”, sugeriu Marcos de Souza, além de reforçar a necessidade de transparência dos custos.
Representando o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Annie Oviedo, lembrou como a tarifa é uma barreira social, citando exemplo da eleição em que as pessoas não poderiam votar pela dificuldade do transporte e foi ofertado transporte gratuito. “Zerar a tarifa significa garantir direito a cidade e às pessoas”, disse. Repensar a fórmula paramétrica seria uma das mudanças possíveis, pensando na remuneração por quilômetro por exemplo. “Até porque precisamos mudar a lógica de que para o ônibus ser barato precisa ser lotado”, destacou.
Autor da tese “Tarifa Zero: mobilidade urbana, produção do espaço e Direito à Cidade”, o doutor em Arquitetura e Urbanismo Daniel Caribé afirmou que a mobilidade urbana e o modelo de financiamento do transporte no Brasil estão em crise. “Não é só implementar subsídios. Temos a oportunidade de mudar o transporte, a lógica como é ofertado e, consequentemente, mudar nossas cidades”, disse. Ele avalia a importância de obrigar Governos a participarem e de pensar a mobilidade urbana a partir da lógica de direito social.
O arquiteto e urbanista Tiago Gomes, que atua como consultor em vários planos de mobilidade urbana, lembra que não é possível relegar todo o sistema às empresas privadas. “Ainda temos que avançar na discussão para democratizar o acesso aos dados de uso sistema de transporte”, disse. Ele defende que é preciso pensar que a remuneração por passageiro tem que ser separada, não pode ser o ponto central do recurso. “Sem o transporte, as pessoas não têm acesso à saúde, à educação, ao emprego. Então, as pessoas com renda limitada têm acesso a outra cidade. Não acho que transporte gratuito é sonho, mas um direito que a gente precisa alcançar em algum momento”, disse.
O direito de ir e vir também foi bastante debatido pelo deputado federal Jilmar Tatto, defensor do sistema de tarifa zero. Ele vê a necessidade de legislação para definir responsabilidades. “Precisamos de medidas para financiar essa composição e viabilizar recursos”, disse. A contribuição pelo usuário do carro, pelos empregadores, pelo Orçamento Municipal ou com o depósito em um Fundo a partir de políticas de intervenção urbana são algumas das possibilidades avaliadas.
A necessidade de estudos técnicos e jurídicos foram apontadas como essenciais para a viabilidade da tarifa zero, conforme o presidente-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbanos, Francisco Cristóvão. “Outra questão analisada é a disponibilidade orçamentária. Temos que discutir as fontes extra tarifárias. A NTU tem estudo específico desse tema e especialistas apontaram seis formas de gerar esses recursos”, ressaltou. Ele elenca ainda alguns pontos a serem considerados, como aumento da demanda, precisando até mesmo ampliar frotas ou viagens.
Para o engenheiro civil Lúcio Gregori, que elaborou o Projeto Tarifa Zero, a medida é uma questão política em que, a partir dessa definição, questões técnicas terão de ser resolvidas. “Não vamos esperar um projeto perfeito, sem problemas para fazer a tarifa zero”, alertou. Ele recordou que iniciou essa discussão ainda em 1990 e, recentemente, o tema voltou à tona. “Temos que regulamentar o transporte como direito constitucional”. Ele acrescenta que o modelo existente é anacrônico e insustentável.
Subsídios e superavit – No seminário, especificamente sobre a situação atual do transporte público de Campo Grande, o subsídio do passe dos estudantes, dos idosos e os lucros do Consórcio Guaicurus foram abordados.
O diretor-presidente da Agereg (Agência Municipal dos Serviços Públicos Delegados), Odilon de Oliveira Junior, recordou que atualmente a Prefeitura de Campo Grande subsidia os passes dos alunos da Rede Municipal de Ensino enquanto o Governo do Estado fica com a responsabilidade do passe dos estudantes da rede estadual. Já o Governo Federal repassou R$ 14 milhões no último ano para subsidiar o passe dos idosos.
“Todos esses valores são auditados, tem um sistema que registra o que realmente é usado pelos alunos e idosos. A tarifa, porém, é uma fórmula paramétrica, definida no contrato”, explicou Odilon Junior, sobre o cálculo que aponta o montante de R$ 12 milhões mensais de custos e resulta no valor da tarifa a ser cobrada dos passageiros, descontando o que pode ser subsidiado.
A advogada Giselle Marques, coordenadora do Juristas pela Democracia, alertou sobre o superavit de R$ 68 milhões do Consórcio Guaicurus, nos sete primeiros anos de concessão. O montante foi apontado por perícia em ação judicial que o próprio Consórcio ingressou na Justiça para cobrar reequilíbrio do contrato. “Esse lucro vem do suor e lágrimas de muitos trabalhadores. Vem à custa de muitos trabalhadores que estão pagando uma das tarifas mais caras do País e um dos serviços de pior qualidade”, disse. Ela defende a suspensão do aumento concedido tendo em vista essa informação do superavit. Ainda, no caso de tarifa zero, o caminho seria a retomada da concessão pelo Município. “Não tem sentido nós pagarmos dos nossos impostos para empresas continuarem superavitárias”, completou.
Representando o Consórcio Guaicurus, Robson Strengari falou que o transporte chegou numa situação de dificuldade financeira grande. Ele justificou que o processo judicial não está encerrado e garantiu que os cálculos serão contestados. “Não é bem isso, não iriamos entrar com ação se fosse isso”, disse. Ele recordou ainda a queda no número de passageiros desde 2016, potencializada pela pandemia de Covid-19. Particularmente, ele avalia que os custos deveriam ser menores, não tarifa zero, contando com formas de custear esses valores, por taxas, por exemplo.
O diretor-presidente da Agência Municipal de Transporte e Trânsito, Janine de Lima Bruno, ressaltou a importância de tornar atrativo o ônibus, com ar condicionado e terminais reformados. “Quando tem transporte de qualidade, você diminui o transporte individual. Conseguimos a partir de 2017 dar impulso nos corredores de transporte e melhorar isso no trânsito”, recordou. Ele acrescentou que hoje cerca de 50 cidades brasileiras têm tarifa zero ou reduziram valor em algumas localidades, mas todas são de pequena ou médio porte, destacando o desafio para Campo Grande. Há estudos em cidades maiores, como São Paulo.